“... Agora, estendemos nosso olhar para observar o seguinte:
Pelo menos desde o início do século XIX, a participação do povo negro nos
folguedos carnavalescos brasileiros sempre foi marcada por uma atitude de
resistência, passiva ou ativa, à opressão das classes dominantes. Proibidos por
lei de revidar aos ataques dos brancos, africanos e crioulos procuravam outras
maneiras de brincar no entrudo. Tanto assim que Debret, entre 1816 e 1831, período em que viveu no Brasil,
flagrou cenas interessantes de carnaval, como por exemplo, um grupo de negros
que, fantasiados de velhos europeus e caricatuando-lhes os gestos, zombava dos opressores, criando, sem saber, os
cordões de velhos, de imenso sucesso no início do século XX...”. (Nei Lopes)
O carnaval brasileiro é, essencialmente, sinônimo de cultura
negra. O carnaval carrega uma carga simbólica muito forte para nós negros... É
um momento de evidência, onde todos os olhares estão direcionados para nós.
Talvez seja, também, o momento onde tenhamos a maior notoriedade social, onde
temos uma legitimidade indiscutível... Um reconhecimento que em nenhum outro
momento temos.
Sabiamente, Nei Lopes aponta que o carnaval brasileiro, como
hoje o conhecemos, surge também como uma forma de resistência do negro em relação ao branco.
A primeira escola de samba é a Deixa Falar, tendo como um dos mais notórios fundadores Ismael Silva.
Posteriormente outras escolas de samba surgem, como Estação Mangueira e Vai Como Pode, que posteriormente viriam a se chamar Mangueira e Portela. No
início, essas escolas não tinha grandes estruturas, como vemos hoje. Carros
alegóricos simplórios e poucos integrantes davam o tom da festa, onde o mais
importante que a competição, era a diversão. Pouco a pouco, percebeu-se que a festa
poderia tornar-se rentável... E aquela festa que era popular, passou a ser
excludente. Hoje, a comunidade assiste da arquibancada suas fantasias na
passarela do comércio. Com essa apropriação, houve uma transformação de uma cultura
que tinha fortes marcadores populares e de resistência em comercio.
No bojo do tema que envolve a comercialização do carnaval,
que avança a cada ano, o assunto que mais nos toca enquanto mulheres negras é a objetificação de nossos corpos- o que para nós não é nenhuma novidade -
que ganha certa ofensiva nos meses que antecedem o carnaval. A exemplo disso há
pouco tempo tivemos a escolha da ‘globeleza’, uma disputa na escolha da melhor ‘mulata’. O
termo já diz, mulata é uma palavra que tem raíz na palavra mula, do
latim mulus designando diretamente o
animal mestiço de quatro patas. A mula é o produto resultante do cruzamento do
cavalo com a burra, ou seja, passou a aplicar-se ao filho do homem branco com a
mulher negra. Já pararam para pensar por que a mulher negra só aparece na
televisão apenas em dois momentos: ou ela é escrava/doméstica, ou é mulata no
carnaval e nessas duas visões ela está sendo colocada a serviço do homem
branco. Quase que diretamente nossa representação, como mulheres
negras, dentro da mídia é feita através da anulação de nossas capacidades
enquanto agentes transformadores de nossa história, sendo reduzidos a corpos
para serem vistos, isso quando nossas características não são usadas de forma
a nos menosprezar como acontece frequentemente em programas de
“humor”. Isso com certeza tem uma raiz histórica, esses papéis
apresentados na mídia são reflexos de um tratamento herdado do tempo da
escravidão, nesse tempo as mulheres negras eram constantemente
estupradas pelo senhor branco e carregavam o papel daquela que deveria servir
sexualmente sem se opor, apenas aceitando o “destino” que lhe era concedido.
Hoje nós, mulheres negras, continuamos atreladas àquela visão racista do
passado que dizia que só servíamos para o sexo e nada mais.
A
carne mais barata ainda é a nossa, a carne do deboche, do comércio ilegal, a
carne que é alvo das balas “perdidas”, que coincidentemente tem sempre um
destino certo, ainda é a carne negra. O nosso carnaval não é só festa porque
ainda
vivemos em um sistema que mercantiliza
nossas vidas, nosso corpo e nossa sexualidade. Sendo assim, e entendendo que
esse mesmo sistema se vale do racismo, machismo e tantas outras formas de
opressão existentes em nossa sociedade, não comemoramos nem um pouco ao ver os
corpos de outras mulheres negras sendo expostos em uma “competição” em rede
nacional.
A Globeleza representa a nossa exploração, representa o
quanto ainda nos tratam como se só fossemos feitas
para o sexo e para demonstrar, dentro da sociedade, o selvagem, o folclórico. Ela
representa o controle que a mídia branca e machista obtém sobre os nossos
corpos, mas não se deixem enganar, “não deixe que te
façam pensar que o nosso papel na pátria é atrair gringo turista interpretando mulata.” Por isso
buscamos escurecer/esclarecer aqui esse assunto que tanto nos atinge, a
Globeleza não nos representa! Não aceitamos essa imagem, não somos o que essa
mídia racista diz, não somos mais escravos e não aceitamos esse papel.
Confira as fotos de nossa Campanha:
texto muito bom. concordo plenamente.
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